Questões sobre a genealogia histórica de "Multidão"

A MULTIDÃO NÃO TEM ROSTO - MASCARA GUI  FAWKES

Diariamente, usamos a palavra multidão para nos referirmos a uma grande quantidade de coisas ou pessoas. Não é incomum a sua associação com outros termos semelhantes, como massa e povo. Aos nossos olhos hoje, a multidão nos parece um aglomerado de coisas em grande quantidade e sem nenhum tipo de forma ou homogeneidade em oposição à noção de indivíduo/individual.

Esse tipo de pensamento inexato sobre a multidão - inexatidão essa que pode parecer muitas vezes o próprio objetivo do termo - vem dos teóricos sociais clássicos que forjaram conceitos gerais aplicáveis a grupos sociais. A multidão está então na base das teorias sociais modernas junto com termos como povo e massa.

Começamos com Émile Durkheim, sociólogo do século XIX, considerado um dos pais da sociologia moderna. Para Durkheim, o social não existe em si, mas sim como parte de uma sucessão de fatos sociais. Estes fatos sociais estão associados não a uma vontade individual, mas sim estabelecidos pela sociedade a partir de relações criadas entre organizações políticas, instituições e outros grupos. A sociologia se define então a partir de vontades individuais discutidas e transformadas em coletivas dentro dessas instituições. A multidão não poderia ser estudada isoladamente.

Seguindo a linha de pensamento de seu tio, Marcel Mauss trata da multidão a partir da noção de sociedades sem instituições. Essas sociedades desprovidas desses conjuntos de atos impostos sobre o indivíduo são os agregados sociais. Quando efêmeros tais agregados recebem o nome de multidões. Tais multidões são consideradas reinos inferiores do social e só são estudadas quando resultam na criação de instituições, como se fossem um estágio no processo de formação das sociedades.

A partir da exposição do pensamento desses dois teóricos, notamos que o espaço da multidão dentro da sociologia de Durkheim e Mauss é mínimo. Esta só é notada quando parte de um processo maior. Caracterizada principalmente pela sua efemeridade e desimportância no destino social. Existe também nessa ideia, a necessidade de uma equivalência no que diz respeito ao espaço físico dos indivíduos.

Dentro da psicologia podemos também encontrar a multidão intrínseca à psicologia das massas. Gustave Le Bon pensa na noção de massa ou multidão (termos que aqui se confundem) associada a um ser provisório e inconsciente, sem sentimento de responsabilidade ou consciência moral. Vemos que a negatividade desse conjunto é maior ainda quando tratado pelo psicólogo como irracional, instintivo, impulsivo, irritável e intolerante. A perda da razão joga a multidão para baixo na escala civilizatória e a transforma em um instrumento de manipulação, vulnerável ao discurso, imprescindindo de um líder.

Sigmund Freud também vai pensar na multidão ao pensar na “alma coletiva”, mas critica o excesso de generalização de Le Bon. A negatividade da multidão é amenizada quando ele admite a existência de algo em comum entre os indivíduos da multidão que não sua irracionalidade; está presente certo nível de organização, de consciência. A presença de um líder que controlaria a multidão é substituída pela ideia de uma multidão na qual cada membro se apropria do líder por meio de mecanismos de identificação com seus ideais.

Gabriel Tarde, sociólogo e psicólogo, inclui um novo elemento à reflexão sobre a multidão: o público. Antagonizando estes dois elementos, Tarde irá associar o público a uma coletividade que circula independente da proximidade física e provida de pensamento crítico. Do outro lado está a multidão: movida por interesses materiais, egoísta e intolerante, o que impede a criação de um ambiente para discussões e pensamento crítico. Esta coletividade estaria ligada por semelhanças étnicas e físicas, indiferenciada, enquanto que o público, graças a sua reflexão crítica, seria um grupo mais diversificado e tolerante às diferenças; enquanto que o líder do público é o jornalista e o publicista, criadores de mentes críticas, na multidão existiria o líder inspirador, tornando todos os seus membros parte de um mesmo grupo que estão juntos pela mesma causa.

Depois de passarmos por esses três pensadores notamos que, fora o pequeno otimismo de Freud em relação à consciência e capacidade própria de seus membros, a multidão foi sendo vista como um elemento negativo: irracional, egoísta e intolerante. Também caracterizada por uma grande quantidade de indivíduos indiferenciados, suas vontades individuais não têm espaço ou são manipuladas por um líder, em oposição, por exemplo, ao público de Tarde.

Voltando mais atrás no tempo e fugindo da sociologia e psicologia, vemos que a multidão também foi estudada por vários teóricos políticos modernos, começando por Nicolau Maquiavel. Em Maquiavel não existe uma divisão entre povo, massa e multidão. No entanto, sua interpretação segue muito a linha dos teóricos tratados anteriormente. Para esse autor, a multidão é movida por paixões, passível de ser enganada e impulsiva. Ela não é, por sua vez, naturalmente má, mas sim facilmente induzida e desorganizada; daí a necessidade da escolha de um governante capaz de conduzir e aconselhar esse coletivo.

Seguindo a mesma lógica que Maquiavel, Thomas Hobbes descreve a multidão como um conjunto de pessoas, cada um com desejos e juízos particulares, por isso mesmo incapazes de organização e inaptas a governar, mesmo que provida de boas intenções. A necessidade de um líder e de leis para regirem a multidão se faz mais uma vez presente, este líder seria o rei e a multidão seus súditos. O rei em Hobbes seria, no entanto, muito mais que um líder, seria a própria união da multidão em uma só pessoa e representaria todos os seus desejos, sendo considerado assim o próprio povo (para Hobbes diferente da multidão); “O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso pode dizer de uma multidão” [1]. Sem esse controle, a multidão seria deixada em seu estado de natureza, não se diferenciando do resto dos animais.

Tanto Hobbes como Maquiavel são de um momento histórico no qual ocorria o surgimento dos Estados modernos. Isso se reflete nas suas teorias políticas sobre a multidão, na medida em que esta está estreitamente associada à multiplicidade; multiplicidade está que gera conflitos e que se opõe drasticamente ao ideal para o Estado que é a unidade. Na modernidade a multidão confusa é deixada de lado para se pensar nas estruturas organizadoras do social. Vê-se que muitos autores não conseguem achar lugar para ela dentro de suas teorias sociais e políticas, já que, pela sua indefinição, não servia como objeto para uma ciência, social ou política.

Dos pensadores políticos que tratam da multidão, talvez o que mais se sobressaia seja Baruch Spinoza. Este autor parte da multidão para construir sua teoria política. A multidão consiste no sujeito político de caráter coletivo, sujeito este capaz de constituir um estado civil. Tal associação é destoante de quase todos os outros teóricos que a vêem como desordenada e que associam a desordem à multiplicidade. Spinoza vê a multiplicidade como uma característica não positiva, mas sim intrínseca a todos os corpos (equivalentes a multidões). Tanto o corpo físico quanto o corpo social são caracterizados por infinitas multidões, uma pertencente à outra. Não só o corpo é múltiplo como a mente também o é. Isso abre espaço para pensarmos na capacidade de mentes e corpos múltiplos constituírem um sujeito político: a multidão.

Em Spinoza existe a noção de que esse sujeito coletivo é também responsável pelo exercício do poder (potestas), em oposição ao pensamento que define a multidão como instrumento de um representante do Estado, o qual possui o poder. Tais mecanismos de representação estão agora subordinados à multidão mediante aquilo que chamamos de potência (potentia). A potência seria a capacidade que tem a multidão de controlar o exercício do poder. Se para nós parece que o representante do Estado tem poder para governar, só é assim porque foi estabelecido pela potentia da multidão. Potestas e potentia estão ambos associados a esta coletividade e é através da potentia que a potestas é conferida.

Ainda relacionadas à potentia temos as afecções. A noção de afetos e afecções parte do pressuposto de existência de movimentação dos corpos, estes ligados a infinitos outros. Essa movimentação é originada a partir das diferenças entre as multidões, elemento muito importante e sempre presente nas diversas teorias a cerca desse termo, mas que normalmente é tratado negativamente. Na procura pelo equilíbrio entre si, as multidões acabam modificando-se umas às outras, essas modificações são chamadas de afecções. Essa capacidade de modificação conferida ao corpo aumenta ou diminui a potentia de agir daquele corpo. As variações de potentia são chamadas afetos; que podem ser tanto de alegria (quando ocorre a passagem para uma potência maior) quanto de tristeza (quando ocorre o inverso).

Depois de fazermos essa pequena exposição à cerca dos teóricos da multidão modernos, passamos a pensar ainda mais retrospectivamente. Partimos então para analisarmos os pensadores medievais que trataram da multidão a partir da exegese bíblica. A aqui Bíblia deve ser pensada como formadora de cultura, assim como uma fonte para os exegetas. Pensamos nela necessariamente como documento, passível de inúmeras interpretações e, como todo documento, com uma série de problemáticas – uma dela a existência de diversas versões. Dentro do nosso tema, é importante pensar nas diferentes versões justamente pelo fato de que, em algumas delas, o termo multidão foi muitas vezes omitido ou trocado por outro de menor complexidade.

Para pensarmos na Bíblia como objeto de análise é necessário nos situarmos num contexto marcado fortemente pela prática da exegese. Essa prática muito comum durante praticamente toda Idade Média, consistia em leitura e interpretação de passagens bíblicas e poderiam ser de vários níveis, desde o literal até um moral ou anagógico dentro de um plano mais espiritual. Acreditava-se que esse exercício de leitura e releitura infinita era essencial e revelador, considerado então uma prática muito importante dentro da vida religiosa. Essa mentalidade hermenêutica medieval característica da época, enxergava o mundo bíblico de forma atemporal, fora do medieval ou antigo. O caráter sagrado dos textos bíblicos possibilitava um contato mais próximo com o divino através da prática da exegese.

A partir desse esclarecimento podemos começar a pensar mais objetivamente no termo multidão dentro dos textos sagrados. Ao começar pelo Gêneses, podemos reunir algumas passagens onde o termo está presente, a saber: a) do anjo para Agar (gen. 16:7-10), b) Deus para Abraão (gen. 17:19-20) e c) Jacó para Deus (gen. 32:12-13) [2]. Essas passagens servem para exemplificar o que se pode constatar sobre o teor da palavra multidão e seus derivados neste livro. O termo aparece claramente relacionado à noção de infinidade tanto numérica quanto no que se refere ao tempo. Além de seu caráter incontável, de tão grande que é, a multidão aparece relacionada ao surgimento de uma descendência, de um povo. Essa relação se concebe a partir de um anúncio divino, de uma promessa de uma multidão futura, uma nação. Até aí, podemos perceber que esta palavra está ligada a algo tão positivo quanto à benção divina - o termo augebo está intimamente ligado a uma criação, crescimento ou aumento a partir do próprio Deus.

Em Números, nos atemos à passagem em que Coré, Datã e Abirão, em sua “revolta”, declaram que toda multidão é sagrada/ santa (omnis multitudo sanctorum est). A palavra sanctorum cria uma relação com o que é divino e sagrado, por um lado claramente positivo, na medida em que se aproxima com Deus. A partir dessa sentença, podemos começar também a pensar nesse coletivo por outro viés. Abandonamos o maniqueísmo do positivo ou negativo e passamos a pensar na exclusão ou não, da existência ou não de um lugar para essa multidão, uma função.

Orígenes, importante teólogo do século II, pensa em um lugar para a multidão a partir da lógica de que, mesmo sendo vista como ruim pelos homens, ela é criação de Deus e na obra Dele nada é inútil. Mesmo uma multidão de hereges, como poderíamos pensar dentro do contexto da revolta de Coré, é santa. É santa porque tem papel importante numa lição que leva a verdade; suas palavras heréticas aumentam o brilho da verdade cristã e ajudam os fiéis a não se perderem da verdade. Notamos que a lógica de Orígenes é caracterizada por enorme relativização, encontrando lugar para todos, inclusive para uma multidão de infiéis, incluindo-a num plano divino e sagrado; a multidão encontra sua função.

Pedro Damiano, no século XII vai discordar de Orígenes quando acredita ser a multidão profana e pecadora e que, justamente por isso deve ser salva. A multidão também pode servir como instrumento de salvação para aquele que tentar salvá-la – mesmo que este acabe sendo mal sucedido. Notamos presente em Damiano uma visão negativa dessa coletividade. Ela está separada do povo, aparece como um nível anterior a este. A união com o Cristo – através do sacrifício na cruz – a espiritualiza e transforma em um povo. Essa noção de separação é introduzida em séculos anteriores como, por exemplo, por Gregório, o Grande.

Gregório, o grande, também conhecido como Gregório I, papa do final do século VI e começo do VII, também comenta sobre a multidão santa, dessa vez a partir do livro de Reis e de forma diferente da de Orígenes. Para ele a multidão existe enquanto comunidade dos fiéis e inexiste fora da santa Igreja: uma multidão de homens santos da Igreja. Existe uma repulsa pelos judeus – rejeitados ao receber seu castigo, separando-se de Israel - mulçumanos e hereges, estando estes, não dentro de um plano divino, mas excluídos dessa multidão de santos e fiéis, estes sim sagrados.

Em Orígenes, a separação aparece de forma diferente. Este exegeta trata do “resto” de Israel separado por Deus, mas não considera este resto uma porção numérica ou real; é uma forma de representação da impossibilidade de um todo, o “não-todo”. Esse “resto” a ser salvo é associado aos judeus, ajudando na ligação destes a outra noção de coletividade que é a multidão. A noção de “resto”, relacionada à multidão, se mostra como limite teórico extremo da indiferenciação de seus elementos. Por sua vez, a questão da diferenciação está intrinsecamente ligada a de profano e sagrado. Notamos que cada exegeta pensa nesse par de formas diferentes: existe um problema na definição do que é sagrado ou não. O sagrado aparece como aquilo que foi subtraído ou separado do profano; cria-se a diferença e esta dá origem à oposição e polarização entre esses dois elementos.

No pensamento de Isidoro de Sevilha, que faz estudos “etimológicos” das palavras (como vemos a partir de De Gentium vocabulis e De civibus), a multidão é o único termo (dentre gens – multidão proveniente de uma mesma origem, povo – multidão de homens reunidos pelos mesmos desejos e plebe – resto dos cidadãos, excluindo-se os notáveis da cidade) que não circunscreve uma coletividade estabelecida ou homogênea, não tem conceito, organização ou espaço físico na sociedade. O termo mais próximo, plebe, ainda se diferencia pela existência de organização, em oposição à multidão.

Destoantes de Isidoro de Sevilha no que diz respeito à inexistência de um lugar para a multidão estão João Chrysostomo e Santo Agostinho. Chrysostomo se destoa dessa interpretação quando pensa em uma multidão de almas santas, homogênea, na qual o importante é a sua qualidade e não quantidade. Santo Agostinho inclui a multidão como parte da cidade, metáfora para povo, mas ainda inferior a este no que diz respeito ao seu nível de organização. A multidão seria uma massa indefinida e sem identidade, mas teria uma importante função: essa massa indefinida daria origem a uma cidade, ou seja, a um povo.

Salviano de Marselha, teólogo do século V, parte para uma generalização ainda maior: a multidão é todo mundo. Sendo toda ela pecadora, a separação daqueles que foram punidos por ação divina dos que foram perdoados aparece para demonstrar a misericórdia de Deus. Ao mesmo tempo em que é perversa ao conspirar contra Deus, é associada a características divinas como a misericórdia. A multidão continua sendo vista como um problema, não em si mesma, mas sim em relação ao modo com que se deve lidar com ela, de que modo deve ser disciplinada e controlada. É necessário um “exorcismo textual” que ocorre ao classificarmos ela como santa.

Além de pensarmos na multidão dentro de uma reflexão espiritual medieval, podemos também encaixá-la em um contexto político e social, nos aproximando dos teóricos políticos modernos. Destacamos a “função externa” dos pensadores religiosos que também se encontravam em um ambiente político e que se relacionavam com a sociedade. Para pensarmos nesse sentido exemplificaremos através de duas situações: o conflito dentre Santo Agostinho e Pelágio nas primeiras décadas do século V e, dando um salto, o pensamento de Pedro, o cantor dentro da Reforma Gregoriana na segunda metade do século XII.

O debate entre agostinianos e pelagianos está baseado em dois principais pontos de discordância, sendo eles: a) na perpetuação do pecado original e b) na função do batismo. Pelágio crê que o pecado original é redimido com o sacrifício de Jesus, estando todos salvos espiritualmente e portadores de bondade interior. O importante nesse pensamento é a necessidade de uma demonstração pública dessa bondade interior. Assim como no caso do batismo: este purifica completamente o homem, mas isso deve se mostrar em suas ações externas. Já Agostinho pensa no pecado como parte essencial do homem, tendo este de sempre lutar contra aquele. O homem então está sempre em combate com seu mal interior. Dentro disso o batismo não possui poder de purificação total sobre o homem, sendo necessário sempre um movimento de aprofundamento da fé.

A partir desses pontos podemos pensar numa implicação social a partir da função da multidão para cada um dos grupos. Pelágio tem um pensamento elitista e quer se afastar desse povo/ multidão, não pensando numa função ou espaço para ele dentro da cabeça da Igreja - já que o povo tem muito menos meios de mostrar com ações externas sua fé (como sua incapacidade de realização de grandes obras). Agostinho pensa diferentemente. Justamente por causa do mal constante que existe dentro de toda multidão, o teólogo acreditava que devia existir um contato também constante com essa coletividade a fim de dar assistência no combate a esse mal através de sermões diferentes daqueles direcionados aos clérigos; só assim ocorrendo o aprofundamento da fé e a salvação. Em Agostinho existe a inclusão da multidão na cristandade e, consequentemente, sua sacralização, enquanto que Pelágio considera a multidão o corpo, separada da elite, que seria a cabeça da Igreja.

Dando um salto para o século XII temos Pedro Cantor, teólogo, exegeta e professor que trabalha com o conceito de multidão de maneira muito forte. Ele também se bate com a problemática do pecado original. Para ele, essa questão está sempre ligada ao coletivo indefinido (multidão/ povo/ plebe) e à noção de puro/ impuro, de inclusão/ exclusão. O pecado original confere aos homens a igualdade – todos nós somos afetados por ele, incluindo a multidão – a dor do pecado, no entanto, pode ser pensada com individual, como elemento de diferenciação. Outro conceito importante no pensamento desse exegeta é a noção de potestas. Em oposição à misericórdia, embutida no espírito cristão, a potestas é interpretada como exercício do poder, associado à punição, tirania e autoridade, podendo ser ele imperial ou eclesiástico. Entre esses dois poderes está a figura do populus (povo, mas que não costuma representar todo mundo, sendo mais associado à plebe), elemento complicador. Tal elemento não pode ser ignorado devido ao seu grande poder: sua grande quantidade e pureza - os mais pobres são mais facilmente tocados pelo espírito santo.

Pedro Cantor pensa na noção de igualdade em oposição às hierarquias laicas e eclesiásticas. A potestas é negativa, ligada à violência, punição e associada às relações de dominação feudais. Contraposta a ela estava o concílio (reunião de religiosos) relacionado à igualdade e baseado na ideia de misericórdia. O populus forma concílios. Tais concílios devem ser ouvidos e devem resistir às ordens de superiores, podendo recorrer à luta armada. O povo tem poder: pode tirar e conferir poder aos reis. A partir disso, vemos como essa teoria entra em choque com os poderes laicos e eclesiásticos da época. Pedro, o cantor faz uma reflexão que dialoga com um momento de tentativa de criação de um código jurídico para a cristandade (tentando não mais se basear somente no Antigo Testamento, mas também não tão próximo do sistema jurídico romano como no tempo de Agostinho). Dentro dessa situação confusa de termos que se misturam, podemos pensar na multidão, que traz sempre um ar de tensão, mesmo na Idade Média, associando-a com o povo de Pedro.

A substituição do termo “multidão” por “congregação” ou “assembléia” ainda em versões latinas da Bíblia parece visar um controle sobre a potência subversiva do termo. Podemos então nos perguntar se já para os medievais a multidão era vista como problemática. Se sim, seria porque seu conceito já não era mais bem compreendido ou por um desejo de mudança a partir da compreensão do termo? Seriam as nossas questões a cerca da multidão - sobre sua quantidade, natureza, comportamento, homogeneidade e espaço social - de origem moderna ou existentes desde um período mais antigo?

Além de medievalistas que pensam nesse termo em seu contexto medieval exegético, hoje existem autores refletindo sobre a multidão, e outros conceitos que dialogam com ela, dentro de um contexto politizado, como Antonio Negri e Michael Hardt. Ao tentar definir multidão em sua obra Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, os autores, seguindo até aí passos dados por outros antes deles, a diferenciam de povo, massa e classe trabalhadora. O povo é uno enquanto que a multidão não pode ser reduzida a uma unidade singular – ela é composta por uma multiplicidade de diferenças singulares e particulares de cada um de seus elementos. A massa também não é reduzida a uma unidade, mas não é composta por diferentes sujeitos sociais – ocorre uma indiferenciação de seus membros. Mais uma vez a noção de diferenciação aparece como um fator complicador. A identidade é formada a partir da negação das diferenças, portanto a partir do povo – só este tem poder de soberania. Em contrapartida, a ação política só pode ser efetivada pela multidão, que age nas bases daquilo que as singularidades de seus elementos têm em comum; assim: “Multidão é uma forma de organização política que, por um lado enfatiza a multiplicidade das singularidades sociais em luta e, por outro, procura coordenar suas ações comuns e manter sua igualdade em estruturas organizacionais horizontais” [3].

Assim, Negri e Hardt propõem uma nova forma de se ver a multidão, transformando-a em um agente político. Isso garante à multidão uma capacidade de organização que supera as diversas diferenças de seus membros. Está presente nesse pensamento um viés revolucionário e, ao mesmo tempo uma positivização e uma banalização das diferenças no que se diz respeito à convivência humana. Através da reflexão das obras desses dois autores, identificamos uma manifestação contemporânea da questão da multidão, esta aqui vista mais positivamente e mais definida do que aquela dos teóricos políticos e sociais modernos ou dos exegetas medievais.

Partimos de uma noção de multidão misturada, desordenada e transformadora. Parece válido aqui pensarmos na ideia de “conceito tabu” e na multidão como um. Não só no sentido de ser um conceito normalmente deixado de lado ou ignorado por nós, mas também como um complicador quando pensamos na sua relação com outros conceitos como povo, massa, comunidade, nação e coletividade. O estudo da multidão se dá a partir de um estudo que envolve ao mesmo tempo sociologia, filosofia, história e linguística – formas de pensamento muito interligados na Idade Média. O estudo da multidão prescinde de uma definição fixa do termo, a reunião de pessoas é somente uma de suas formas de apresentação. Originada a partir de um debate de palavras, a multidão importa, não como definição, e sim como instrumento para reflexão sobre as problemáticas sociais, políticas e religiosas que a envolviam na Idade Média e que a envolvem até hoje.


Bárbara Kossin Tasso

(IFCH-Unicamp)

Bibliografia:

· ANTUNE, Marco António. Comunicação, Público e Multidão em Gabriel Tarde, em http://www.bocc.ubi.pt/pag/antunes-marco-antonio-comunicacao-publico-multidao.pdf (acessado em 23/06/2011).
· ESPINOSA, Baruch de. Tratado Político, São Paulo: wmf Martin Fontes, 2009.
· FREUD, Sigmund. A psicologia das massas e a análise do eu, Frankfurt, Fischer, 1999.
· GUIMARAENS, Francisco de. Spinoza e o conceito de multidão: reflexões acerca do sujeito constituinte, em http://publique.rdc.puc-rio.br/direito/media/Guimaraens_n29.pdf (acessado em 23/06/2011).
· HARDT, M. e NEGRI, A. Commonwealth, Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
· ______. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, New York: Penguin Press, 2004.
· HOBBES, Thomas. Leviatán: o la matéria, forma y poder de uma república, eclesiástica y civil, 2. Ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
· ______. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro, 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
· ISIDORE DE SÉVILLE. Étymologies: livre IX, Société d’éditions <>, 1984.
· JOSEFO, Flávio. Antigüedade Judías: Libros I-X, Akal Ediciones, Madri, Espanã, 1997.
· MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.
· ______. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, 3° Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.
· ORIGÈNE. Homélies sur les Nombres I: Homélies I-X, Les Éditions du Cerf, Paris, 1996.
· RODRIGO, Lídia Maria. Maquiavel, Ed. Vozes, 2002.


Notas:

[1] HOBBES, T. 1998, p. 211.

[2] Mais especificamente a) et rursum multiplicans inquit multiplicabo semen tuum et non numerabitur prae multitudine, b) super Ismahel quoque exaudivi te ecce benedicam ei et augebo et multiplicabo eum valde duodecim duces generabit et faciam illum in gentem magnam e c) tu locutus es quod bene mihi faceres et dilatares semen meum sicut harenam maris quae prae multitudine numerari non. (Tradução da Vulgata Latina disponível em http://www.fourmilab.ch/etexts/www/Vulgate/).

[3] HARDT, M. e NEGRI, A. 2009, p. 110.

1 Comentários

  1. Parabéns Barbara, quando o João Gomes me falou do artigo eu sabia que era bom, pela indicação dele, mas lendo agora, eu achei muito interessante, me parece um resumo de um semestre inteiro de estudos sobre a multidão, confeccionado de forma brilhante, muito bom mesmo o uso das fontes e as análises.

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