Glossa Ordinaria: primeiro hipertexto da história?



Advertência: este texto foi escrito antes que me fosse possível ter acesso a obra recente de L. SMITH, The Glossa Ordinaria: the making of a medieval Bible commentary, Leiden, Brill, 2009. A segunda parte do título acima, colocado em forma de questão, se dirige mais diretamente ao título da obra de D. A. SALOMON, The Glossa Ordinaria. Medieval Hypertext, Cardiff, University of Wales Press, 2006, à qual, infelizmente, e da mesma maneira que para o livro de Smith, não me foi possível ter acesso. As duas obras se encontram, ao que parece, esgotadas ou com um prazo de entrega demasiado longo. Nenhuma delas consta nos catálogos das bibliotecas brasileiras consultadas.

As pesquisas sobre a história da produção e da difusão da Glossa ordinaria estão entre aquelas que só podem ser realizadas através de um longo e atento trabalho com os manuscritos originais. Nenhuma edição moderna ou contemporânea tem os meios, por si só, de nos apresentar em um volume, mesmo fac-similar, toda a complexidade e a originalidade dos copistas, iluminadores e exegetas medievais neste campo. Nos últimos sessenta anos ao menos todo o corpus de textos manuscritos conhecidos sobre os livros bíblicos glosados foi reavaliado, enquanto que alguns novos manuscritos foram descobertos, contendo ou versões completas ou trechos, traços, de algumas glosas específicas. A cada novo passo dado pela crítica textual especializada, ou seja, pelos estudos paleográficos, codicológicos e com eles os estudos exegéticos e bíblicos, foi necessário, quando o volume de informações se mostrou suficiente ou algum testemunho textual pôde preencher alguma lacuna na árvore genealógica de uma rede de cópias, verificar mais uma vez com relação ao conjunto de conhecimentos já adquiridos se as datações e as atribuições de origem local ou autoral se mantinham, se confirmavam, ou se deslocavam em direção a novas hipóteses.

Foi o caso, por exemplo, do longo crédito dado a Walafrid Strabon sobre a composição da Glossa ordinaria. Este personagem foi discípulo de Rabano Mauro e portanto foi formado no ambiente da produção manuscrita e exegética carolíngia. O trabalho de compilação, a forma quase antológica de reunião de autoridades convocadas para compor o conjunto de comentários colados ao texto bíblico que durante muito tempo também foi considerada como um procedimento característico das escolas carolíngias como a de Auxerre acabava por colaborar com a idéia de filiação a um compilador deste meio intelectual. Além disso, a presença considerável de Rabano Mauro entre os principais autores citados na Glossa mantinha a suspeita em alta. Foi somente em um artigo póstumo de J. de Blic publicado em 1949 que a atribuição à Strabon foi definitivamente desmontada peça por peça[1]. Os detalhes deste desmonte sistemático não nos interessarão neste momento.

O caso da destituição do nome de Walafrid Strabon não foi, evidentemente, o início do questionamento a respeito das origens e da autoria da Glosa. Desde uma década antes disso já se havia criado uma lacuna considerável que foi preenchida pouco a pouco pelos trabalhos indispensáveis de Beryl Smalley desde meados dos anos trinta[2]. Foi através das suas pesquisas que se estabeleceu solidamente que o início, portanto que a idéia de composição da Glosa deveu-se a escola catedral de Laon sob a tutela de mestre Anselmo e de seu irmão Raul nas primeiras décadas do século XII. Nada disso pôs fim ao debate, muito pelo contrário. Mesmo sem contestar o minucioso trabalho de Smalley, ela própria e muitos outros historiadores tiveram, pois que se debruçar sobre a espinhosa questão da escrita, da paginação, da cópia, dos empréstimos e das doações, da circulação, da interferência de outros mestres da sacra pagina, etc. na história particular de um livro, de um método, de uma iniciativa editorial, podemos dizer, entrecortada pela história do desabrochar das escolas urbanas anteriores às universidades, de uma leitura bíblica escolástica progressivamente independente do claustro, de uma circulação mais intensa de bens e de idéias via estudantes, da história também do novo prestígio das cidades e da relação de algumas escolas com seus bispos e com a corte real.


 A história da Glossa ordinaria, ou mais precisamente das glosas, ou da “Glosa remanuseada”[3], não se restringe certamente ao campo restrito dos estudos paleográficos e codicológicos. Os resultados alcançados por estes trabalhos mais do que fundamentais instigaram uma série de estudos sobre a história do texto, do livro, das relações sociais e pessoais implicadas no ato de leitura e de escrita, assim como pesquisas de ordem hermenêutica sobre os sentidos novos possíveis de serem produzidos sobre textos já muito bem conhecidos através de um novo agenciamento de comentários, de uma nova relação entre estes textos, de sua fixação progressiva em um sistema mais ou menos fechado de uma obra dependente de múltiplas reservas de autoridade. A “formatação” (mise en forme) e a “paginação” (mise en page), a disposição gráfica, estética, funcional dos textos entre os quais se inclui o texto das Escrituras possui um lugar de destaque na organização desta “sociedade de significantes”[4]. Enfim, a Glossa ordinaria possui um lugar de destaque na longa história da exegese bíblica medieval e de seus métodos, mas também na história das técnicas de leitura, escrita e memorização. Gostaria de citar, sobre este último ponto, Mary Carruthers: “Um dos traços mais característicos da pedagogia do século XII (que nós conhecemos essencialmente sob a forma do comentário bíblico, dos sermões e das obras de meditação) é que ela descreve pinturas mentais, freqüentemente assimiláveis a diagramas (apesar de algumas exceções) que servem para consolidar, para resumir e para ‘fixar’ os principais conteúdos do texto comentador”[5]. Portanto, como é possível observar desde os primeiros textos acompanhados de um comentário, de uma glosa – veremos em seguida as dificuldades destas duas denominações – que a relação de dependência entre um em outro, entre o texto base e seu comentário, ou a relação de complementaridade entre os dois se expressa não no conteúdo que nós chamaríamos hoje de “textual”, escrito, mas em sua disposição espacial mútua sobre a página, na maneira como esta última é por eles preenchida e no tamanho das letras grafadas, além de suas cores ou ornamentações. Em um primeiro momento, o que temos é uma relação que pode ser chamada graficamente de paralela, isto é, texto base e comentários ocupando lado a lado a página, mas com diferenças sempre reconhecíveis entre eles, marcantes mesmo. Digo paralelo, mas na verdade trata-se das glosas marginais, dispostas no espaço mais exterior da página, remetendo ao conteúdo mais centralizado que convive com aquele na maioria das vezes em todo o seu em torno. Este tipo de composição da página era já observado em comentários de textos clássicos, ou seja, não cristãos desde a Antiguidade. Neste sentido as inovações medievais provêem mais da utilização em larga escala da pagina dividida em três colunas. Claro, havia desde o início da Idade Média obras compostas com quatro ou até cinco colunas, mas era necessário equilibrar no final das contas do tamanho das letras a serem copiadas com o espaço disponível. Era muito mais simples que esse procedimento fosse realizado sobre pergaminhos grandes, por isso ele é mais freqüentemente observado em grandes bíblias e nos aparatos textuais que podiam acompanhá-las como as tábuas de concordância entre os Evangelhos. Assim, as duas colunas se mostram um procedimento mais econômico respondendo melhor também às necessidades em se copiar ou anotar outros comentários ao seu redor.


A utilização das glosas interlineares, ou seja, aquelas intimamente introduzidas entre as linhas do texto base a ser explicado é mais interessante e ao que parece é uma invenção do ocidente latino medieval. Guy Lobrichon nota com interesse que “a composição em três colunas ao menos, com aparato duplo de glosas, parece ser um fenômeno típico do cristianismo latino. O zelo sagrado dos copistas judeus da Torah não parece ter-se relaxado ao ponto de introduzir glosas de mão humana no espaço reservado à Bíblia. O Talmude pode envolver o texto bíblico, mas ele não penetra na coluna central. No Oriente grego, desde Evagrio o Pôntico (século IV), coloca-se em circulação manuscritos bíblicos em que variantes hexaplares[6] e comentários justapunham-se ao lado da coluna reservada ao texto da Bíblia; e mais tarde, os copistas de manuscritos em série dispuseram nas margens excertos de comentários. Mas nunca os Bizantinos inseriram glosas interlineares, e nunca eles retomaram a composição de tipo ocidental. Não se pescou, pois, a idéia desse modelo estranho nos vizinhos ou nos concorrentes”[7].

A invenção das glosas interlineares, imiscuindo-se dessa maneira entre as palavras sagradas do texto das Escrituras é um acontecimento cujas implicações profundas, hermenêuticas e espirituais, ainda esperam por estudos de maior fôlego. Até o momento os historiadores que se debruçaram sobre a Glosa ou sobre a história da exegese medieval e de seus desdobramentos físicos, visuais, apenas tangenciaram o problema, reconhecendo-o como evidente, mas evitando os riscos das hipóteses apressadas. Seria desejável que a organização espacial do texto da Glosa sobre o pergaminho pudesse ser tratada como um tema viável pelos historiadores da iconografia medieval, no sentido dos estudos já existentes sobre a exegese visual[8], ou mais atualmente, seguindo as propostas de Jérôme Baschet sobre uma “iconografia relacional da imagem-objeto”[9]. No entanto, tendo em vista a possível excepcionalidade cristã ocidental, estaríamos de certo diante de uma nova postura com relação ao sagrado do texto, ou ao sagrado no texto, um aspecto mais amplo de convivência entre exegeta, copista e leitor com “o” texto sagrado por excelência que é a Bíblia o qual se apresenta, se mostra verdadeiramente e antes de qualquer outra forma de acesso ao seu conteúdo como uma experiência de composição imagética, ou de arquitetura textual disponibilizada ao olhar antes que ao ouvido, ou aos lábios. A existência das glosas marginais e interlineares já provoca dessa maneira um primeiro impacto visual e mental que ajuda a explicar parcialmente a lentidão de sua elaboração, de sua completa sistematização se comparadas ao aparato de comentários produzidos mais ou menos na mesma época pelos juristas sobre a Digesta e os demais textos jurídicos romanos[10].

Do meu ponto de vista essas são as grandes linhas grosseiramente traçadas sobre a importância evidente da Glossa ordinaria para a Idade Média, para os estudos medievais e os de períodos subseqüentes. Mas ainda resta olharmos mais de perto para ela. Concretamente, o que ela é? Antes de nos voltarmos para sua imagem nos é necessário ter em mente o que ela representa de maneira prática na interpretação bíblica cristã medieval.

Antes de tudo, é preciso saber que a Glossa ordinaria só será assim denominada no fim do século XIII e a partir do século XIV, antes disso ela é citada pelos compiladores ou exegetas apenas como a Glosa, ou como “marginalis” ou “interlinearis”. Nenhuma atribuição de autoria ou de autoridades extra-textuais é mencionada. É a Glosa mesma que é a autoridade, que é autorizada e conseqüentemente pode vir a produzir autoridade por contágio no texto no qual ela é citada. Diga-se de passagem, que a forma da citação da Glosa não é sempre explícita. Na verdade, algumas das suas principais fontes, como por exemplo Beda o Venerável, Agostinho, Isidoro de Sevilha, Rabano Mauro entre outros podem ser citados isoladamente sem que se faça qualquer indicação de que a passagem escolhida se encontrava antes no conjunto da Glosa. Desta maneira temos de desconfiar de repetições mais ou menos freqüentes de alguns desenvolvimentos patrísticos em comentários produzidos depois da segunda metade do século XII.

No entanto, segundo o estado atual das pesquisas, o sucesso da Glosa Ordinária se dá também por força de algumas iniciativas individuais. Como vimos, primeiro em Laon, com Anselmo e Raul, mas depois na escola de Chartres e logo depois, prosseguindo-se simultaneamente, em Paris na escola de Saint-Victor. Esta última concentra em si ao mesmo tempo o fato de ter sido fundada por Guilherme de Champeaux, antigo aluno de Anselmo de Laon, e receber através da mediação de Henrique I, filho de Luís VI a doação de toda uma importante biblioteca na qual se encontrava um exemplar da Glosa. Através de um trabalho especializado de datação e de genealogia de iluminuras e ornamentos em manuscritos provenientes de Laon, Chartres, e Paris, Patricia Stirnemann[11] demonstrou a implicação direta da escola de Chartres na difusão da Glosa, sobretudo na produção de cópias decoradas. Há ainda dúvidas no que concerne às mãos dos copistas que se mostram diferentes nos manuscritos de Saint-Victor e de Chartres, o que nos torna possível hoje pensar apenas que deve ter havido outras doações, talvez até diretamente da parte de Laon, que levaram provavelmente alguns exemplares para Paris, os quais teriam recebido seus ornamentos em um segundo momento.

O projeto de Anselmo e de Raul era, ao que tudo indica, realizar um comentário de toda a Bíblia. Um trabalho de tal envergadura não pôde chegar a seu fim antes de sua morte. Em meio a algumas incertezas, parece correto dizer que Anselmo foi responsável pela Glosa de Paulo e dos Salmos, talvez da dos quatro Evangelhos. Raul pode ter glosado Mateus e logo em seguida Gilberto o Universal teria glosado o Pentateuco, os Profetas e as Lamentações de Jeremias antes de 1128 quando ele foi eleito bispo de Londres[12]. As atribuições sobre os demais livros são bem mais difíceis e as dúvidas permanecem até hoje em dia. A definitiva estabilização do texto da Glosa demorará um pouco mais ainda. Na segunda metade do século XII Gilberto Porretano expande as glosas patrísticas de Anselmo sobre Paulo[13] e os Salmos. Este texto ficará conhecido como a Media Glossatura. Pedro Lombardo, por fim, entre 1135 e 1143 estende ainda mais as fontes e comentários dos mesmos dois livros preservando o núcleo de Anselmo. Este último remanuseio será conhecida como Maior ou Magna Glossatura[14].

Ainda creio ser útil acrescentar mais algumas precisões formais sobre a função da glosa, mas mais especificamente sobre seu comportamento puramente textual. Para isso recorrerei – mais uma vez – às sínteses esclarecedoras de Gilbert Dahan, com as quais pretendo mostrar em parte o estado atual das pesquisas sobre a Glosa[15]. No conjunto dos mecanismos que ativam a exegese medieval Dahan se propõe a distinguir o que ela chama de “microestruturas” textuais, entre as quais, portanto, ele inclui a glosa[16]. Neste ponto não se trata evidentemente da Glossa ordinaria, da obra em si, mas de um procedimento de interpretação do qual ela depende, do qual ela se origina e que por isso deve ser brevemente explicitado. Inútil de resumir a definição quase lexical de Dahan: “[A glosa] é a estrutura mais elementar da exegese, seu ‘átomo’, pode-se dizer: uma palavra do texto bíblico seguido de sua explicação; pode-se representá-la esquematicamente por a=b. É, claro, a forma dos dicionários, particularmente dos dicionários bíblicos, e se observará que o lexicógrafo Papias definia assim a glosa: ‘o que enuncia o que é por uma só palavra’; nenhuma referência é feita à Bíblia – mas nós estamos na segunda metade do século XII e, se a glosa é uma das formas elementares dos comentários em geral, ela não é específica à exegese da Bíblia, como ela o será a partir do século XII; o termo glossa não pertence ainda ao vocabulário daquela. Esta forma elementar a=b (palavra do texto bíblico explicada por um sinônimo) pode ser ampliada (lema bíblico de muitas palavras – explicação de uma ou várias frases), mas o esquema resta idêntico e, sobretudo, a brevidade permanece uma característica decisiva. (...) O emprego de Glossa (depois de Glossa ordinaria) para designar o comentário standard redigido nos dois primeiros terços do século XII vem complicar nossos problemas semânticos, porque os comentários da Glossa ordinaria não são unicamente glosas – os excertos emprestados aos Pais podendo ter desenvolvimentos que não são compatíveis com a brevidade da glosa. (...) Nós reteremos sobretudo [o fato] que as considerações de paginação (mise en page) desempenharam um papel decisivo na composição da Glossa e que, notadamente, existiu uma partilha entre as explicações breves, colocadas entre as linhas, acima da palavra explicada (e portanto tornada glossa interlinearis), e as explicações mais longas, situadas nas margens, em torno do texto, cada explicação começando por um lema de uma ou mais palavras (trata-se bem da Glossa marginalis). São evidentemente as explicações interlineares que correspondem à forma elementar a=b da glosa. Foi dito por vezes que as glosas interlineares se limitavam ao comentário literal, as glosas marginais expondo o sentido espiritual; não é nada disso e são apenas considerações de dimensão que estão na origem desta distribuição” [17].

A definição precisa de Dahan não deve nos enganar. Existem ainda outros detalhes na aplicação da glosa como microestrutura e de seu entendimento pelos autores medievais que escapam aos propósitos do presente texto. A sua aparente simplicidade, entretanto, só serve para aguçar ainda mais a curiosidade quanto ao seu lugar e sua função textual, hermenêutica e possivelmente iconográfica no interior da estrutura maior dos comentários dispostos em forma de Glossa ordinaria. O problema seria assim pensar seriamente a respeito do equilíbrio entre a extrema simplicidade de um lado, aquela da letra, não do sentido literal, expressa na brevidade das interpretações, e a acumulação ordenada em extrema complexidade de outro, representada pela disposição das glosas marginais e pela imagem total de cada página preenchida neste trabalho de relojoeiro dos glosadores e compiladores das escolas de Laon, de Chartres e de Saint-Victor; ou como escreveu uma vez Edmond Jabès, “Simples é o labirinto, na letra mais simples (Reb Essod)” [18]. O papel central do texto bíblico deve ser também repensado. Central, obviamente, como reserva de sentidos, instigador de interpretações, fundador de uma cultura do comentário; mas também central como peça chave da estrutura gráfica da forma da Glosa Ordinária. A relação hierárquica entre as três dimensões básicas de textos assim dispostos, Escrituras, glosa marginal e glosa interlinear estabelecem ou não uma hierarquia hermenêutica entre as partes? Que tal fato pareça natural quando observado do ponto de vista do texto bíblico ele é um pouco menos quando visto sob a perspectiva das duas formas textuais de glosa. Qual a relação específica de cada uma delas com o texto central e qual a relação possível entre elas. Sua dimensão ou extensão seria um critério suficiente para estabelecer-se a prevalência da marginal sobre a interlinear? Esta última, em sua proximidade quase profanatória das linhas sagradas não se beneficiaria deste contato? Que fique bem claro, todas estas questões se lançam de uma plataforma especulativa das mais inseguras, mas das mais necessárias, a meu ver. Elas não apresentam um programa ou uma metodologia, mas indicam um hiato em nossa compreensão do funcionamento interno da Glosa.

Há um sentido prático explícito que não pode ser de maneira alguma ignorado. Como foi dito a composição da Glosa Ordinária, podendo ser remontada historicamente a partir de um período anterior ao século XII só ganha sua real aplicação no ambiente escolar – escolástico em seu destino parisiense – das comunidades de mestres e discípulos reunidos sob a proteção do capítulo catedral nas cidades de maior prestígio do Norte da França. A intenção prática era, portanto, fornecer um instrumento de trabalho de mais fácil manuseio, no qual com um só movimento fosse possível encontrar a passagem bíblica desejada e o aparato exegético das autoridades a ele relacionado. A Glosa possuía assim um emprego direto no ensino, daí seu grande sucesso depois de passar pelas mãos de Pedro Lombardo, ou de ser acrescida do texto da Postilla de Nicolau de Lira. Mas ela era também um trabalho de interpretação em si. Os desenvolvimentos exegéticos de Anselmo e de Raul estão lá presentes não só através das suas escolhas de fontes, mas configuram algumas tomadas de posição eclesiológicas e “políticas” bem estudadas por Philippe Buc[19].

Na história ainda lacunar e sensivelmente imprecisa da Glosa Ordinária carece ainda de um diálogo entre os avanços de todas as pesquisas aqui elencadas para que possa se formar uma imagem mais coerente de sua existência própria, como texto, como imagem, como elaboração exegética, como trabalho escolar, como um novo processo de organização e expressão do pensamento, como postura talvez inédita dos intérpretes com o texto a ser interpretado, logo, do estatuto particular da própria interpretação.


João Gomes da Silva Filho
Université de Paris-I Panthéon Sorbonne



[1] J. de BLIC, « L’œuvre exégétique de Walafrid Strabon et la Glossa ordinaria », Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale, 16 (1949), p. 5-28 [título abreviado RThAM]. Cf. B. SMALLEY, The Study of the Bible in the Middle Ages, Notre Dame, University of Notre Dame Press, s/d (1 ed. Oxford, Blackwell, 1941), p. 57-60.

[2] B. SMALLEY, The Study, Op. cit.; “Gilbertus Univeralis, bishop of London (1128-1134) and the problem of the Glossa ordinaria” (parte 1), RThAM, 7 (1935), p. 235-262; “Gilbertus Universalis, bishop of London (1128-1134) and the problem of the Glosa ordinaria” (parte 2), RThAM, 8 (1936), p. 24-60; “La Glossa ordinaria. Quelques prédécesseurs d’Anselme de Laon”, RThAM, 9 (1937), p. 365-400; « Les Commentaires bibliques à l’époque romane : glose ordinaire et gloses périmées », Cahiers de Civilisation Médiévale, 4 (1961), p. 15-22 ; « Some Gospel commentairies of the Early Twelfth Century », RThAM, 45 (1978), p. 47-148. Ver também os artigos reunidos em Studies in Medieval Thought and Learning. From Abelard to Wyclif, London, 1982.

[3] Como prefere P. BUC, L’Ambigüité du Livre. Prince, pouvoir, et peuple dans les commentaires de la Bible au Moyen Âge, Paris, Beauchesne, 1994, p. 74ss.

[4] Empresto a expressão à E. LÉVINAS, La Totalité et l’Infini. Essai sur l’extériorité, Paris, Livre de Poche, 2006, p. 198 : «Le signifiant, celui qui donne signe – n’est pas signifié. Il faut déjà avoir été en société de signifiants pour que le signe puisse apparaître comme signe. Le signifiant doit donc se présenter avant tout signe, par lui-même – présenter un visage ».

[5] M. CARRUTHERS, Le Livre de la Mémoire. La mémoire dans la culture médiévale, Paris, Macula, 2002, p. 335.

[6] A «Hexaplas », que significa sêxtuplo em grego, designa a Bíblia poliglota, composta a partir do comentário exegético por Orígenes antes de 245, visando acalmar as polêmicas entre cristãos e judeus sobre a boa versão e a harmonização de suas fontes respectivas. O texto era composto por seis colunas contendo, respectivamente: 1- o texto consonântico hebraico, 2 - a transliteração do hebraico em letras gregas, 3 - a tradução grega de Áquila de Sinópe, 4 - a tradução grega de Simaco, 5 - a tradução grega da Septuaginta e 6 - a tradução grega de Teodósio.

[7] G. LOBRICHON, « Une nouveauté: les gloses de la Bible », La Bible au Moyen Âge, Paris, Picard [Les Médiévistes Français, 3], 2003, p. 160-161.

[8] A. C. ESMEIJER, Divina Quaternitas. A preliminary study in the method and application of visual exegesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1978.

[9] J. BASCHET, L’Iconographie Médiévale, Paris, Gallimard [Folio histoire inédit], 2008, p.166 : « Tentons de préciser les tâches d’une iconographie relationnelle. La délimitation de son objet ne saurait passer entre ce qu’on appelle le contenu et la forme. Écartant cette distinction, elle fait porter toute son attention sur ce que Jean-Claude Bonne nomme le ‘syntaxique’, c'est-à-dire ‘les propriétés plastiques et chromatiques en tant qu’elles sont signifiantes’, notamment par les rapports qu’elles instaurent au sein de l’image. Ainsi doit-on prendre en compte la position des éléments, des figures ou objets, en rapport avec les propriétés du champ de l’image (haut/bas, droite/gauche, centre/marge), les rapports des figures avec les fonds différenciés sur lesquels elles s’enlèvent, éventuellement aussi avec la bordure de l’image, fréquemment ‘débordée’, ou avec des marqueurs spécifiques de lieu. Quant aux relations entre les figures elles-mêmes, elles peuvent être définies par leurs positions respectives – juxtaposition latérale, superposition verticale, symétrie, vis-à-vis - , mais aussi par d’éventuelles modalités de contact, par des variations d’échelle de représentation, par une confrontation des gestes et des postures, ainsi que par l’échelle modale que les caractères ornementaux de la représentation sont susceptibles de construire. Les types de rapport ainsi créés peuvent être d’homologie, d’association ou d’assimilation, d’opposition – absolue ou relative – ou de hiérarchisation. Ce dernier cas est surabondant : des nombreuses œuvres médiévales peuvent être analysées comme la production d’une gamme hiérarchique permettant de classer figures et lieux, au regard d’oppositions telles que humain/divin, terrestre/céleste, etc. Enfin, plusieurs de ces relations peuvent être combinées, notamment lorsqu’une similitude formelle entend faire apparaître un écart, ou bien lorsqu’il s’agit d’exprimer une différence dans la similitude ou une hiérarchie dans l’homologie, comme entre les deux Testaments. »

[10] H. KANTOROWICZ, “Note on the development of the Gloss to the Justinian and the Canon Law”, in: B. SMALLEY, The Study, Op. cit. (nota 1), p. 52-55.

[11] P. STIRNEMANN, « Où ont été fabriqués les livres de la Glose Ordinaire dans la première moitié du XIIe siècle ? », dans F. Gasparri (éd.), Le XIIe Siècle : mutations et renouveau en France dans la première moitié d XIIe siècle, Paris, Le Léopard d’Or, 1994, p. 257-285.

[12] B. SMALLEY, « Gilbertus Universalis… », Op. cit. (nota 2), [1935] [1936].

[13] M. SIMON, «La Glose de l’Épître aux Romains de Gilbert de la Porrée», Revue d’Histoire Ecclésiastique, ½ (1957), p. 51-80.

[14] B. SMALLEY, The Study, Op. cit. (nota 1), p. 60-64.

[15] Muitos outros autores poderiam aqui ser mencionados, mas não considero que houve acréscimos substanciais que justificassem sua inclusão em um texto intencionalmente mais sintético. As discussões pontuais e o ponto de vista justo de muitos deles exigiriam daqueles que possam vir a se interessar pela história da Glosa Ordinária e de sua historiografia uma leitura completa e atenta: C. DE HAMEL, Glossed Books of the Bible and the origins of the Paris Booktrade, Woodbridge, 1984; R. WIELOCKX, “Autour de la Glossa ordinaria”, RThAM, 49 (1982), p. 222-228; J. CONTRENI, “The Biblical Glosses of Haimo of Auxerre and John Scottus Eriugena”, Speculum, 51 (1976), p. 411-434; M. GIBSON, “The Twelfth-Century Glossed Bible”, dans E. A. Livingstone (ed.), Studia Patristica, t. 23, Louvain, 1989, p. 232-244; IDEM, “The Place of the Glossa ordinaria in Medieval Exegesis”, dans K. Emery and M. D. Jordan (eds.), Ad Litteram. Authoritative texts and their medieval readers, Notre Dame (Ind.), 1992, p. 5-27; IDEM and K. FRÖHLICH, “Preface”, Biblia Latina cum glossa ordinaria (Strasbourg 1480-1481), Turnhout, Brepols, 1992, t. I, p. V-XXVIII.

[16] G. DAHAN, L’Exégèse Chrétienne de la Bible en Occident Médiéval XIIe-XIVe siècle, Paris, Cerf, 1999, p. 122-123: essas microestruturas são, segundo o autor, a glosa, a nota, a questio, a distinctio, o “encadeamento de versículos” e por fim a “acumulação de exegeses”.

[17] IDEM, p. 123-126.

[18] E. JABÈS, Le Livre des Questions-I, Paris, Gallimard, 1995, p. 407.

[19] P. BUC, Op. cit. (nota 3).
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